terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Entrevista Adrianao Suassuna à Abreu Freire

Extracto de uma entrevista com Ariano Suassuna, realizada na sua residência no bairro de Casa Forte, em Recife, a 2 de Agosto de 2007. A conversa tinha por tema a força da língua portuguesa e a importância do padre António Vieira.


Ariano Suassuna: … na universalidade, ele acreditava sobretudo na universalidade. A língua portuguesa é um idioma que se presta para a universalidade, para um diálogo com todos os povos.


Abreu Freire: A universalidade do português foi a grande utopia do padre António Vieira, mas eu recuso-me a considerar que o Quinto Império seja uma utopia. Utópica era a ilha de Thomas More, curiosamente inspirada nos textos de Vespucci sobre oBrasil e descrita por um marinheiro português com o estranho nome de Rafael Hitledeu. O Quinto Império de Vieira, cuja ideia original não é dele mas que foi retomada por ele no Maranhão, é uma visão filosófica e projectiva da história do mundo, cujo futuro seria cristão e português. E a língua do futuro seria o português, claro, mesmo se, para explicar essa expectativa a todo o mundo, tivesse que o escrever numa língua então mais universal que era o latim. Por isso Vieira é um ícone da língua portuguesa… como Ariano também é. Ele foi um pioneiro na política, na estratégia, na missão e também na língua, nesta língua magnífica que nós todos falamos. Como é que Ariano se sente quando realiza que está a partilhar essa mesma língua com Vieira?


AS: Olha, Abreu: deixa-me contar-te uma coisa que é o meu depoimento pessoal. Veja bem: Eu comecei a escrever muito jovem e, desde a fundação do Teatro do Estudante de Pernambuco que me interessei de muito perto pelo teatro. Então, havia outros escritores que às vezes consideravam que no teatro a língua portuguesa era uma língua fraca. Aconteceu que um dia, eu lendo Otelo… – o meu inglês não é muito bom, dá para ler somente jornais e revistas – mas eu lia o texto inglês com a tradução ao lado, para me ajudar. Então no Otelo - eu não sei se Você se lembra – existe uma cena em que Iago tenta convencer Otelo que Desdémona o está traindo e Otelo fica transtornado. Ele tem tudo para ser inseguro: é mais velho, ele é um homem de 50 anos e ela uma jovem de 14 ou 15, ele é negro e ela branca, ele um mouro estrangeiro e ela é filha do Doge, uma aristocrata, enfim está tudo preparado para um enredo de ciúmes. Então Iago, aquela alma danada, convence Otelo de que Desdémona está cometendo uma traição. Então ele diz para Otelo se esconder porque está a chegar Cássio, que seria o cúmplice de Desdémona; Iago falará com Cássio e Otelo poderá ouvir e entender até que ponto Desdémona é uma criatura desprezível. Ora, Otelo está tão perturbado que não presta atenção ao facto de que Iago não pronuncia sequer o nome de Desdémona. Quando Cássio chega ele fala bem alto: “E aí, aquela mulher que anda apaixonada por você”… ao que Cássio replica que aquela mulher é apenas uma prostituta e que não merece paixão nenhuma. Depois que Cássio deixa a cena Otelo sai do esconderijo e está de tal modo sufocado pela indignação que ele cai gritando: blood, blood, blood: sangue, sangue, sangue! Aí eu vi que dizer em português “sangue, sangue, sangue” é evidentemente mais fraco. Mas nessa altura eu não tinha pensado numa coisa, que era o seguinte: sangue era mais fraco porque a peça estava escrita em inglês. Se Shakespeare tivesse escrito a peça em português ele não teria posto lá sangue, sangue, sangue, mas sim uma outra expressão mais forte. Mas essa convicção de que o português era uma língua teatralmente mais fraca eu perdi-a quando li Vieira.

No dia em que eu li o Sermão das Cinzas eu pensei: eu posso ser um mau dramaturgo por não ter inspiração nem enredo, mas não porque o português seja uma língua fraca. Eu não sei se me lembro de tudo, mas eu vou na mesma dizer-to assim mais ou menos porque foi demasiado importante para mim este texto. Ele foi pregado no dia de Quarta-feira de Cinzas e diz assim:

Duas coisas prega hoje a igreja a todos os mortais, ambas tristes, ambas certas, ambas temerosas, ambas de difícil entendimento. Olha só para esta frase a abrir o sermão: você pode tentar traduzir estas primeiras palavras para outra qualquer língua que fica mais fraco.


AF: Podemos traduzir as palavras, mas a força não.


AS: Não é? Olha só como o discurso se torna ainda mais forte: uma é presente, a outra futura. Mas a futura os nossos olhos já podem vê-la e a presente não a alcança o nosso entendimento. E que duas coisas misteriosas são estas? Sois pó e em pó vos haveis de converter. O pó futuro, no qual nos havemos de converter, não precisa de fé nem de entendimento para o alcançar. Basta a vista de qualquer sepultura aberta ou fechada para que tenhais a prova do que eu vos digo. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó. E tudo o que ali há é o nada que havemos de ser. Tudo pó!

Rapaz, isto é lindo demais!


NOTA: trata-se do Sermão de Quarta-feira de Cinzas, pregado em Roma em 1672 na igreja de Santo António dos Portugueses. Ariano citou o texto de cor e de improviso. O texto do sermão é o seguinte: Duas coisas prega hoje a igreja a todos os mortais; ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Mas uma de tal maneira certa e evidente, que não é necessário entendimento para a crer; outra de tal maneira certa e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar. Uma é presente, outra futura: mas a futura vêem-na os olhos; a presente não a alcança o entendimento. E que duas coisas enigmáticas são estas? Sois pó e em pó vos haveis de converter. Sois pó, é a presente; em pó vos haveis de converter, é a futura. O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, vêem-no os olhos: o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o entendimento o alcança. Que me diga a Igreja que hei-de ser pó, não é necessário fé nem entendimento para o crer. Naquelas sepulturas, ou abertas ou cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há, é o nada que havemos de ser: tudo pó (Sermões, II, 171-2) Que memória prodigiosa, a de Ariano aos 80 anos!


AF: Quem mais poderia dizer coisas tão profundas e existenciais com uma linguagem tão…

AS: ...simples, acessível e forte. Você veja até o ritmo da prosa: as letras dizem pó, as pedras cobrem pó. E tudo o que ali há é o nada que havemos de ser. Tudo pó. É ou não é uma batida forte? A partir daí, Abreu, eu nunca mais pensei que o português tivesse qualquer coisa de fraco. O português é uma língua forte. Aliás até Cervantes reconhecia que o português era a língua mais sonora que existia no mundo.



AF: E era um castelhano de gema, de Alcalá de Henares, a dizê-lo, que não foi um homem qualquer: um combatente e herói de Lepanto e o maior escritor de toda a língua castelhana.


AS: Ele dizia isso do português e do catalão, que são línguas muito próximas. É importante que tenha sido um castelhano a dizê-lo porque esse depoimento é muito lisonjeiro para nós, muito seguro para a nossa auto-estima.


O sermão da Quarta-feira de Cinzas foi pregado por Vieira em Roma faz hoje 338 anos. Ariano completa este ano 83 anos, continua a escrever e recomenda-se.

Fonte: http://antonioabreufreire.bloguepessoal.com/

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